A juíza de Curitiba – que atuou em São Mateus do Sul -, Inês Marchalek Zarpelon, que citou a raça de um réu negro para associá-lo a um grupo criminoso em uma sentença, pode ser demitida do serviço público e ainda responder a processo criminal por discriminação. A menção poder levar ainda a uma reforma e até à anulação da decisão que condenou o réu.
Na sentença, de junho, a magistrada citou que Natan Vieira da Paz, um homem negro de 48 anos, “seguramente” integrava a organização, “em razão de sua raça”. O caso ganhou repercussão com uma postagem da advogada do condenado, Thayse Pozzobon.
A Defensoria Pública do Paraná anunciou que constituirá uma força-tarefa para revisar todas as sentenças proferidas pela juíza nos últimos 12 meses. Em nota, a entidade afirmou ter recebido com “estarrecimento e inconformismo” o teor da decisão.
Antes mesmo de o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinar que o Tribunal de Justiça paranaense (TJ-PR) elucide os fatos, a Corregedoria do órgão anunciou abertura de procedimento para apurar a conduta da magistrada.
Via assessoria, o TJ-PR informou que abriu prazo para defesa da juíza e que a investigação seguirá resolução do CNJ, a Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e o regimento interno da Corte.
Mesmo que um dos artigos da Loman preveja que juízes não sejam punidos por opiniões ou pelo conteúdo de decisões que proferirem, como explica a advogada Natália Brotto, especialista em direito constitucional, o próprio dispositivo abre exceções para “casos de improbidade ou excesso de linguagem”.
“São conceitos extremamente amplos e que fornecem pouca objetividade para analisar casos como a decisão da juíza”, ressalva.
Para o presidente da OAB-PR, não haveria como enquadrar o ocorrido nas hipóteses de imunidade. “Não vemos que ela possa invocar esse direito, pois não se trata de opinião”, diz.
Como explica Natália Brotto, as penas administrativas podem variar da mais leve, uma advertência, à mais grave, com a demissão do serviço público, a depender do entendimento da maioria absoluta dos julgadores.
A Corregedoria do tribunal paranaense, formada por sete juízes auxiliares e dois desembargadores, tem 140 dias para concluir o processo, incluindo prazo para defesa e manifestação do Ministério Público (MP).
Além da via administrativa, a seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) encaminhou o caso ao MP para averiguar possível ocorrência de crime de discriminação ou preconceito com base na raça, previsto no artigo 20 da lei 7.716/1989.
O delito estipula pena de reclusão de um a três anos e multa, mas, como ressalta o presidente da OAB-PR, Cássio Telles, permite transação penal, ou seja, substituição da prisão por penas alternativas, como prestação de serviço à comunidade. A perda do cargo público também é uma das possíveis consequências previstas na lei, já que o ato foi cometido no exercício da função.
Natália Brotto não exclui a possibilidade de enquadrar a conduta da juíza no crime de injúria racial, previsto no artigo 140, § 3º, do Código Penal, com pena de reclusão de um a três anos e multa.
A advogada que denunciou o caso pediu ainda a anulação da sentença que condenou seu cliente por associação criminosa, roubo e furto. Ela ainda aguarda prazo para fornecer as razões da apelação ao TJ-PR. Thayse Pozzobon argumenta que o fator “raça”, citado na decisão, foi usado para aumentar a pena imposta ao réu.
A juíza Inês Zarpelon não respondeu ao pedido da reportagem para comentar os desdobramentos. Via Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), a juíza havia divulgado uma nota pedindo desculpas pelo ocorrido e afirmando que a frase foi “retirada de um contexto maior” e que a cor da pele do réu não foi levada em consideração para condená-lo.
“Se houve um erro, que então seja esclarecido o quanto antes. Pedimos que sentença seja reformada e anulada e que não sejamos mais reféns de decisões como essas. Esse tipo de conduta é intolerável, seja no Judiciário ou em qualquer lugar”, afirma Pozzobon.
Para o presidente da OAB-PR não caberia uma anulação, mas apenas uma reforma da sentença. A decisão caberá aos desembargadores do tribunal paranaense, que podem fazer voltar o processo ao estágio anterior à condenação.
Telles acrescenta que, em 33 anos de profissão, foi a primeira vez em que se deparou com uma menção à raça em uma sentença condenatória. Na OAB-PR, até então, a juíza não havia sido alvo de outras reclamações por parte de advogados.
“O erro aconteceu, foi lamentável, ainda que ela esteja justificando por conta de uma falha de redação na sentença, um erro gravíssimo, jamais poderia ter sido escrito dessa maneira”, diz.