A manifestação da juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, causou revolta ao mencionar a raça de um réu em uma sentença em que condena sete pessoas por organização criminosa. A sentença é sobre um grupo acusado de fazer assaltos e roubar aparelhos celulares de vítimas nas Praças Carlos Gomes, Rui Barbosa e Tiradentes, no centro de Curitiba.
“Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente “, disse a magistrada.
O caso se tornou público após a advogada Thayse Pozzobon, que defende um dos réus, publicar o trecho da sentença nas redes sociais. O cliente dela, Natan Vieira da Paz, de 42 anos, foi condenado a 14 anos e dois meses de prisão por organização criminosa e por roubos no centro de Curitiba.
“Associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas também o racismo ainda latente na sociedade brasileira.
Organização criminosa nada tem a ver com raça, pressupor que pertencer a certa etnia te levaria à associação ao crime demonstra que a magistrada não considera todos iguais, ofendendo a Constituição Federal.
Um julgamento que parte dessa ótica está maculado. Fere não apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira.
O Poder Judiciário tem o dever de não somente aplicar a lei, mas também, através de seus julgados, reduzir as desigualdades sociais e raciais. Ou seja, atenuar as injustiças, mas jamais produzi-las como fez a Magistrada ao associar a cor da pele ao tipo penal”, diz a advogada no Instagram. Ela vai recorrer da sentença.
Na decisão, a juíza cita a raça de Natan três vezes. Fala que a pena foi elevada em razão da “conduta social” do réu e diz que Natan é réu primário e que “nada se sabe” da sua “conduta social”.
Outro lado
Por meio de nota de esclarecimento, a juíza Zarpelon nega que tenha utilizado a cor do réu como base da fundamentação da sentença. Leia a nota na íntegra:
“A respeito dos fatos noticiados pela imprensa envolvendo trechos de sentença criminal por mim proferida, informo que em nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor.
O racismo representa uma prática odiosa que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social. A linguagem, não raro, quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades.
Sinto-me profundamente entristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não condiz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender.
A frase que tem causado dubiedade quanto à existência de discriminação foi retirada de uma sentença proferida em processo de organização criminosa composta por pelo menos 09 (nove) pessoas que atuavam em praças públicas na cidade de Curitiba, praticando assaltos e furtos. Depois de investigação policial, parte da organização foi identificada e, após a instrução, todos foram condenados, independentemente de cor, em razão da prova existente nos autos.
Em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas.
A frase foi retirada, portanto, de um contexto maior, próprio de uma sentença extensa, com mais de cem páginas.
Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais.
O racismo é prática intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo.
Peço sinceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pag. 117), ofendi a alguém.
INÊS MARCHALEK ZARPELON”
Tribunal de Justiça do Paraná
Por nota, o Tribunal de Justiça do Paraná informou “que a Corregedoria Geral da Justiça, instaurou procedimento administrativo para apurar fatos noticiados pela imprensa relativos à sentença proferida pela Juíza Inês Marchalek Zarpelon no processo judicial 0017441-07.2018.8.16.0013”.
Repúdio OAB-PR
A OAB Paraná reiterou seu repúdio a toda a manifestação de racismo e comunica que está solicitando ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) e ao Ministério Público providências para apuração dos fatos ligados à sentença proferida pela magistrada Zarpelon. Segundo a Ordem, o texto contém afirmações relativas à cor de um cidadão como algo negativo. Nele, a magistrada afirma que referida pessoa seria “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça (…)”.
Leia a nota na íntegra:
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Paraná, juntamente com suas comissões da Advocacia Criminal e da Igualdade Racial, vem a público manifestar seu veemente repúdio à fundamentação lançada em sentença da magistrada Inês Marchelek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, ao tecer considerações sobre a cor de um cidadão como algo negativo, na análise de sua conduta social. Na decisão, afirmou-se que referida pessoa seria “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”.
A afirmação é inaceitável e está na contramão do princípio constitucional da igualdade e da não discriminação. Cor e raça não definem caráter e jamais podem ser utilizadas para fundamentação de sentença, notadamente na dosimetria da pena.
A humanidade deve caminhar no sentido da eliminação de todos os preconceitos, notadamente os relacionados à origem, raça e cor, pois somente assim alcançaremos o ideal de uma sociedade livre, justa, fraterna, igualitária e solidária, estabelecido, na Constituição Federal, como um dos objetivos da República Federativa do Brasil.
A cultura de séculos de opressão, que vem desde o sequestro violento de negros na África para exploração de suas vidas Brasil, com a violação repetida e sistemática de seus mais fundamentais direitos, é narrada em incontáveis publicações científicas atestando as consequências terríveis que geram na Justiça Criminal.
A OAB-PR comunica que, na condição de defensora intransigente das garantias fundamentais, está encaminhando às autoridades do Poder Judiciário e do Ministério Público pedido de apuração e aplicação das sanções que o caso reclama e que acompanhará todo o desenrolar desses fatos.